17.3.07

A entrevista no JL

Para os mais desatentos, eis a entrevista de Maria Leonor Nunes,
publicada no JL-Jornal de Letras, Artes e Ideias do passado dia 28 de Fevereiro:


O esplendor dos 80
Por Maria Leonor Nunes

Foram seis anos de vida em que deram tudo, da alma ao bolso, por conta e risco e pela convicção que é preciso passar das palavras aos actos, do querer ao fazer. Fizeram Brava Dança, um documentário sobre os Heróis do Mar, um grupo que marcou os anos 80, em Portugal. Jorge Pereirinha Pires, 46 anos, jornalista, tradutor, guionista e crítico literário e musical, – colaborou no JL, nomeadamente sobre matérias ligadas à Filosofia, área em que está a fazer um segundo mestrado, com José Gil –, e José Francisco Pinheiro, 41 anos, realizador de televisão e de videoclips – criador do Pop-Off, um dos mais singulares programas sobre música e não só –, juntaram a uma amizade antiga a ideia de fazer o filme, de que são autores, realizadores e investidores, ainda que tivessem contado com o apoio do ICAM. Só que metade desse apoio foi para pagar os três minutos e meio de imagens, que tiveram de comprar aos arquivos franceses, visto que dos primórdios dos Heróis do Mar não rezam os arquivos portugueses. Mas essa foi apenas uma contrariedade. Não lhes faltaram obstáculos e imaginação para os ultrapassar. De «respigadores» na investigação ao trabalho de «relojoeiros» da montagem, em que pacientemente converteram horas de entrevistas em cem minutos de filme. E não vão ficar por aqui. Brava Dança vai estrear dia 8 de Março, em várias salas de Lisboa e do Porto, mas querem levar a todos os lugares possíveis, numa espécie de descentralização pelo país, o filme que não quer ser uma «elegia», mas é um auto-retrato dos Heróis do Mar ou o recontar da história de uma banda que puxou o país para outra dança.

Jornal de Letras: Porque os Heróis do Mar?
Jorge Pereirinha Pires: Fizemos este filme por várias razões, a primeira das quais porque queríamos fazer alguma coisa juntos. Qualquer coisa que se visse.
José Francisco Pinheiro: Dentro do género documental, sobre uma agremiação musical ou um movimento artístico, poderíamos ter ido por caminhos mais fáceis. O mais difícil talvez fosse mesmo os Heróis do Mar e agarramos esse desafio.
JPP: Porque é uma banda que já acabou há quase 20 anos, não é tema de actualidade. Na prática, durante estes anos, andámos a investigar como respigadores, como no filme da Agnès Varda. Os Heróis vêm de um meio cultural muito pequeno de Lisboa, que no fim dos anos 70 estava sintonizado com outras correntes que agitavam as capitais europeias. A sua via é a música popular, mas o que transmitem é bastante mais vasto. Daí também a sua importância, são literalmente os porta-estandarte.
- Brava Dança fala também de uma geração?
JFP: Dos anos 80 e também de Portugal na actualidade.
JPP: Dificilmente poderíamos encontrar outro grupo que reunisse as suas características e que nos permitisse alargar o discurso para além da ‘infantilização’ das audiências, que normalmente se usa quando se fala de música popular. Além disso, os ‘Heróis’ são realmente notáveis e diferentes.
- Notáveis porque se tornaram muito notados?
JFP: Notáveis individualmente e em conjunto. São cinco personagens fortes e a energia que geraram juntos resultou em algo extraordinário num Portugal que não dançava, com pouco sentido de humor. Acho que nunca mais houve cá um front man de uma banda como o Rui Pregal da Cunha, com a devida vénia a Rui Reininho, que é contemporâneo. Mas também Pedro Ayres Magalhães, com a sua clarividência e genialidade, António José Almeida, sempre crítico, Carlos Maria Trindade, muito cerebral, ou Paulo Pedro Gonçalves, que é uma força da Natureza.
- De Brava Dança decorre a desconstrução de certas ideias feitas sobre os Heróis do Mar, muito conotados com a Direita?
JPP: Foram colocados nesse papel. A leitura que se fez dos Heróis do Mar, a decifração daquele processo artístico, foi condicionada à partida pelos média. Aparentemente certa esquerda estava desesperadamente a precisar de inimigos como forma de mobilizar os seus apoiantes. Aqueles rapazes puseram-se a jeito. É um pouco a medida do Portugal que tínhamos. Ou temos. Evidentemente que essa campanha teve consequências. Por exemplo, o facto de pessoas da extrema-direita aparecerem nos concertos a fazerem a saudação nazi. Eles tinham que os interromper e pedir-lhes para saírem. Claro que isso não era notícia na imprensa. Ninguém se dava ao trabalho de andar a ver os concertos para escrever sobre eles. A crítica musical no início dos anos 80 não era brilhante. Há o célebre episódio de Com as Minhas Tamanquinhas, de Zeca Afonso, ter sido considerado o pior disco do ano...
JFP: Ainda hoje somos consequência desses tempos. Saltámos directos da censura para o mercado, sem fundamentos. E muita imprensa, muito veículo de divulgação não está actualizado com as forças criativas que existem neste país. É mais fácil e seguro pegar nos nomes que já existem há muito tempo, do que investigar, sistematizar e mostrar tanta coisa nova que está a ser feita por jovens. E mais velhos, porque dói imenso ver pessoas que nunca tiveram o lugar que merecem.
- Por exemplo?
JPP: Al Berto. E com tanto lixo que se publica em DVD, acho notável que não se consiga ver filmes portugueses como os do António Reis e da Margarida Cordeiro.
- Há no princípio do filme um forte enquadramento político, que depois se vai diluindo?
JFP: Tal como se diluiu no país. Os Heróis do Mar surgiram com uma força Situacionista, mas não deixaram de ser engolidos e de se vergarem à sociedade de espectáculo e a todo o consumismo inerente.
JPP: Os processos artísticos, a vontade de fazer arte tem sempre uma dominante política, na medida em que se apela a uma determinada comunidade, indistinta e incógnita, sobretudo porque é de gosto. Foi isso que sucedeu com os Heróis do Mar. Eles suscitam o aparecimento de uma comunidade, mas a certa altura tornou-se pouco para puderem prosseguir. A uma sobrevivência em playback, preferiram acabar com o grupo.
- Além dos Heróis, registaram o testemunho de Edgar Pêra, Manuel Mozos ou António Campos Rosado. Que critérios seguiram?
JFP: Proximidade e envolvência no processo, em várias fases. Não nos interessou a opinião exterior.
JPP: É uma história contada de dentro para fora, sem comentadores.
- Sem o contraditório?
JPP: Não tem que haver. Não fizemos jornalismo. E afinal, o contraditório já existiu todos estes anos. Interessou-nos mostrar a vida de um processo artístico.
-Têm outros projectos? Poderemos esperar um documentário sobre outra banda ou mesmo sobre os anos 80?
JPP: E quem tem interesse em filmes ou séries que não tenham que ver com concursos, nem sejam telenovelas? E quem financia? Levámos seis anos a fazer Brava Dança. Uma série sobre os anos 80 em geral ou se faz de uma forma organizada, ou é um projecto até ao fim dos nossos dias.
JFP: Encontrámos muitas dificuldades para fazer este documentário. Num país onde não há a tradição do registo da memória é difícil encontrar imagens de arquivo. Mas já temos de facto outro projecto, que tem que ver com Portugal, as pessoas e os automóveis.
JPP: Portugal visto por um pára-brisas.

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