«[…] A juventude alimenta-se do que as garras apanham, e os antigos defendem-se das gerações insaciáveis atirando carne podre. Mas é carne onde se insinuam ainda o odor e o gosto do sangue, e um tigre juvenil não decorou tão bem a identidade que se não confunda desprevenidamente com uma jovem hiena.
Mas de tudo isso descobri eu os maneirismos e a figura romântica. Éramos uma nova imitação de Cristo na luciferina versão de alguns radicais, antigos e modernos, para quem a poesia foi uma acção terrorista, uma técnica de operar pelo medo e o sangue. Ingenuidade tão monstruosa como a da mitologia solar que transporta para os mercados as pombas da paz, a terceira pessoa do pacto social – isso: o que a lei espera do amansamento das disposições dramáticas.
É sempre fácil caminhar em cima das águas, mas é impossível fazê-lo milagrosamente. Tornou-se um número de circo – aquele equilíbrio no arame que mata o apetite de vertigem e nebulosa delinquência de uma emotividade suburbana. A última revelação é esta de sermos os produtores inexoráveis e os inevitáveis produtos de uma ironia cuja única dignidade é descender do tormento, um tormento sempre equivocado na sua manifestação sensível. Por isso cada vez mais me devoto às imobilidades, aos silêncios, ao sono.
Se quisesse, apresentava-me como uma vítima da escrita, da inocência, da neurose e suas instâncias psiquiátricas e psicanalíticas; uma vítima da mitologia do fogo e da água, das razões misteriosas da morte e transfiguração, ou do princípio de que aquilo que está em baixo é igual ao que está em cima, das práticas sexuais angélicas no fundo do inferno; vítima, enfim, da oposição ao mundo e do radicalismo com que alguém se empenha na utopia do ouro onde gloriosamente queima os dedos. Poderia dizer: sou um leproso!
Mas vivi em África, longe de toda a cartografia vertente, longe também da intenção mitográfica euro-africana – e aconteceram-me alguns entremezes sinistros e iluminantes. Vi leprosos, fui tocado por leprosos. Vi a guerra, a morte frontal, a minha morte – e vi os desertos. Vi-me a mim próprio subindo, numa metamorfose exasperada, dos precipícios do pavor até às estritas regras da vida. E estava maduro para ver tudo. Desejei então ser eu mesmo o mais obscuro dos enigmas vivos, e aplicar as mãos na matéria primária da terra. Gostaria de ser um entrançador de tabaco.
Não sou vítima de nada; não sou vítima da ilusão do conhecimento. Escrever é literalmente um jogo de espelhos, e no meio desse jogo representa-se a cena multiplicada de uma carnificina metafisicamente irrisória. As caçadas celestes, o esotérico pentagrama corporal, a antropofagia mágica imprimiram-me no filme docemente truculento do cinema geral de bairro, endereçado à fruição analfabeta.
Qualquer poeta que tenha atravessado os túneis pode assinar a palavra "merda".
Claro que conheço vários medos e ferocidades. Por isso ainda estou vivo. É o outro lado da ironia, lado a que chamo fabuloso de uma ironia a que também chamo fabulosa, não por serem posse minha, mas por pertencerem a este fabulosamente vazio enigma do mundo.»
[in Photomaton & Vox, Lisboa: Assírio e Alvim, 1979]
Com um obrigado ao Paulo da Costa Domingos
Ver também De Um Lugar Entre Outros
Mas de tudo isso descobri eu os maneirismos e a figura romântica. Éramos uma nova imitação de Cristo na luciferina versão de alguns radicais, antigos e modernos, para quem a poesia foi uma acção terrorista, uma técnica de operar pelo medo e o sangue. Ingenuidade tão monstruosa como a da mitologia solar que transporta para os mercados as pombas da paz, a terceira pessoa do pacto social – isso: o que a lei espera do amansamento das disposições dramáticas.
É sempre fácil caminhar em cima das águas, mas é impossível fazê-lo milagrosamente. Tornou-se um número de circo – aquele equilíbrio no arame que mata o apetite de vertigem e nebulosa delinquência de uma emotividade suburbana. A última revelação é esta de sermos os produtores inexoráveis e os inevitáveis produtos de uma ironia cuja única dignidade é descender do tormento, um tormento sempre equivocado na sua manifestação sensível. Por isso cada vez mais me devoto às imobilidades, aos silêncios, ao sono.
Se quisesse, apresentava-me como uma vítima da escrita, da inocência, da neurose e suas instâncias psiquiátricas e psicanalíticas; uma vítima da mitologia do fogo e da água, das razões misteriosas da morte e transfiguração, ou do princípio de que aquilo que está em baixo é igual ao que está em cima, das práticas sexuais angélicas no fundo do inferno; vítima, enfim, da oposição ao mundo e do radicalismo com que alguém se empenha na utopia do ouro onde gloriosamente queima os dedos. Poderia dizer: sou um leproso!
Mas vivi em África, longe de toda a cartografia vertente, longe também da intenção mitográfica euro-africana – e aconteceram-me alguns entremezes sinistros e iluminantes. Vi leprosos, fui tocado por leprosos. Vi a guerra, a morte frontal, a minha morte – e vi os desertos. Vi-me a mim próprio subindo, numa metamorfose exasperada, dos precipícios do pavor até às estritas regras da vida. E estava maduro para ver tudo. Desejei então ser eu mesmo o mais obscuro dos enigmas vivos, e aplicar as mãos na matéria primária da terra. Gostaria de ser um entrançador de tabaco.
Não sou vítima de nada; não sou vítima da ilusão do conhecimento. Escrever é literalmente um jogo de espelhos, e no meio desse jogo representa-se a cena multiplicada de uma carnificina metafisicamente irrisória. As caçadas celestes, o esotérico pentagrama corporal, a antropofagia mágica imprimiram-me no filme docemente truculento do cinema geral de bairro, endereçado à fruição analfabeta.
Qualquer poeta que tenha atravessado os túneis pode assinar a palavra "merda".
Claro que conheço vários medos e ferocidades. Por isso ainda estou vivo. É o outro lado da ironia, lado a que chamo fabuloso de uma ironia a que também chamo fabulosa, não por serem posse minha, mas por pertencerem a este fabulosamente vazio enigma do mundo.»
[in Photomaton & Vox, Lisboa: Assírio e Alvim, 1979]
Com um obrigado ao Paulo da Costa Domingos
Ver também De Um Lugar Entre Outros
1 comentário:
Aprecio o pluralismo que este blog representa. Tenho a dar-vos os parabéns...
Um pouco de bom senso e desactivavam os comentários...
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