29.3.07

Notas sobre Portugal - 1978


«O "Quinto Império" de Pessoa não exigia já o delírio e a inconsciência e os vãos sacrifícios ao fim dos quais perdemos, como era previsível e até para cegos de nascimento, um império terrestre que só começou a existir a sério para a Nação quando surgiu no horizonte a possibilidade da sua perda. Com essa perda alterou-se em profundidade e definitivamente a imagem corporal que cada português, mesmo os que o não sabiam, transportavam consigo. Aparentemente, sem que isso tenha mobilizado a paixão e a inteligência pátria para reajustar à nova realidade portuguesa, amputada da sua existência secular de nação imperial e colonizadora, uma nova imagem. Depois de tantas décadas de convívio íntimo oficial com uma imagem particularmente irrealista da nossa História e das nossas possibilidades, o despertar dessa existência eufórica acabada em pesadelo tinha de arrastar após si o impulso duradoiro dessa mitologia nefasta. Como era de esperar, não seria uma Revolução caída do céu militar que poderia repor miraculosamente o País em condições de se readaptar, enfim, àquilo que é e que pode. As contas a ajustar com as imagens que a nossa aventura colonizadora suscitou na consciência nacional são largas e de trama complexa demais. A urgência política só na aparência suprimiu uma questão que também na aparência o País parece não se ter posto. Mas ela existe. Querendo-o ou não, somos agora outros, embora como é natural continuemos não só a pensar-nos como os mesmos, mas até a fabricar novos mitos para assegurar uma identidade que, se persiste, mudou de forma, estrutura e consistência. Chegou o tempo de existirmos e nos vermos tais como somos. Ao menos uma vez na nossa existência multissecular aproveitemos a dolorosa lição de uma cegueira que se quis inspiração divina e patriótica, para nos compreendermos em termos realistas, inventando uma relação com Portugal na qual nos possamos rever sem ressentimentos fúnebres, nem delírios patológicos. Aceitemo-nos com a carga inteira do nosso passado que de qualquer modo continuará a navegar dentro de nós. Mas não autorizemos ninguém a simplificar e a confiscar para benefício dos privilegiados da fortuna, do poder ou da cultura, uma imagem de Portugal mutilada e mutilante, através da qual nos privemos de um Futuro cuja definição e perfil é obra e aposta da comunidade inteira e não dos seus guias providenciais.»

Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade - Psicanálise mítica do destino português, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1978 (Junho)

3 comentários:

Anónimo disse...

"Ao menos uma vez na nossa existência multissecular aproveitemos a dolorosa lição de uma cegueira que se quis inspiração divina e patriótica". É óbvio que sou nada perante o Eduardo Lourenço. Ainda assim, tenho para mim que a loucura dos homens, a fé no absurdo ao jeito de Kierkegaard, é ainda e sempre o que é posto em causa pelo racionalismo resultante da Revolução das Luzes. Divino e patologia são termos quase sempre parelelos para alguns filósofos. Pode haver uma hermenêutica pretensiosamente neutra em relação à realidade - a tal capacidade de olharmos para nós que Heidegger não aceitava - mas, por sobre tudo isso, está sempre velada a crítica politicamente correcta dos chamados "delirios patológicos". A vida humana, demasiado humana dos racionalismos, não teve patologias nazis nem comunistas, ao abrigo dos quais tantos milhões de pessoas morreram - tudo isto por causa de uma ideia. Uma ideia de humanidade, unívoca, terrena, com "os pés bem assentes no chão". Entender Portugal é entender o Quinto Império mas igualmente tudo o que lhe subjaz, os Descobrimentos, a Batalha de Ourique, o Milagre das Rosas, a Cruz de Cristo, o Divino Espírito Santo, o Sebastianismo. Portugal é patologia e loucura - e isso é que nos afasta de modo decisivo desta Europa fria e racional. Eu continuo a querer ser excêntrico - fora do círculo e dos fechamentos. A obra é sempre de uma comunidade inteira, mas uma comunidade não é nada sem um "líder providencial". E não... não sou fascista nem estou a falar de Salazar... A História é a minha testemunha. Falem-me de um movimento da História que não tenha um nome maior por detrás de tudo. Para o bem e para o mal, para além do bem e do mal, urge o génio. É esta a palavra - o génio. E Fernando Pessoa foi o último dos nossos génios, hoje tão propenso às análises psicológicas e às patologias.

Capitão-Mor disse...

Bom...subscrevo totalmente as palavras do Miguel Santos!

Anónimo disse...

deixemo-nos de génios e eu-génios e elevemos Pessoa o Poeta e
a Poesia como a quintessência do pensar Portugal